Compilação[1] para a prova de Direito Internacional – 2011.2.1
Paradigmas do Direito Internacional
“Direito internacional e direito interno: teorias em confronto.
Para os autores dualistas — dentre os quais se destacaram neste século Carl Heinrich Triepel, na Alemanha, e Dionisio Anzilotti, na Itália —, o direito internacional e o direito interno de cada Estado são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não se condiciona à sua sintonia com a ordem internacional. Os autores monistas dividiram-se em duas correntes. Uma sustenta a unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito internacional, a que se ajustariam todas as ordens internas. Outra apregoa o primado do direito nacional de cada Estado soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do direito internacional reponta como uma faculdade discricionária. O monismo internacionalista teve em Hans Kelsen seu expoente maior, enquanto a vertente nacionalista encontrou adeptos avulsos na França e na Alemanha, além de haver transparecido com bastante nitidez, entre os anos vinte e os anos oitenta, na obra dos autores soviéticos.
Nenhuma dessas três linhas de pensamento é invulnerável à crítica, e muito já escreveram os partidários de cada uma delas no sentido de desautorizar as demais. Perceberíamos, contudo, que cada uma das três proposições pode ser valorizada em seu mérito, se admitíssemos que procuram descrever o mesmo fenômeno visto de diferentes ângulos. Os dualistas, com efeito, enfatizam a diversidade das fontes de produção das normas jurídicas,
lembrando sempre os limites de validade de todo direito nacional, e observando que a norma do direito das gentes não opera no interior de qualquer Estado senão quando este, havendo-a aceito, promove-lhe a introdução no plano doméstico. Os monistas kelsenianos voltam-se para a perspectiva ideal de que se instaure um dia a ordem única, e denunciam, desde logo, à luz da realidade, o erro da idéia de que o Estado soberano tenha podido outrora, ou possa hoje, sobreviver numa situação de hostilidade ou indiferença frente ao conjunto de princípios e normas que compõem o direito das gentes. Os monistas da linha nacionalista dão relevo especial à soberania de cada Estado e à
descentralização da sociedade internacional. Propendem, dessarte, ao culto da constituição, estimando que no seu texto, ao qual nenhum outro pode sobrepor-se na hora presente, há de encontrar—se notícia do exato grau de prestígio a ser atribuído às normas internacionais escritas e costumeiras. Se é certo que pouquíssimos autores, fora do contexto soviético, comprometeram-se doutrinariamente com o monismo nacionalista, não menos certo é que essa ideia norteia as convicções judiciárias em inúmeros países do ocidente — incluídos o Brasil e os Estados Unidos da América—, quando os tribunais enfrentam o problema do conflito entre normas de direito internacional e de direito interno.” Compilação do Livro “REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 8 ed. ver. E atual. São Paulo: Saraiva, 2000”
Fontes do Direito Internacional
“Fontes do DI: constituem os modos pelos quais o Direito se manifesta, ou seja, as maneiras pelas quais surge a norma jurídica. São os meios formais do DI.
Não se pretende com isto negar a existência das fontes materiais (os elementos históricos, sociais e econômicos). Porém, ao direito positivo, só interessam as fontes formais. Exemplo: um Tratado é fonte formal do DIP. [Conforme posição apresentada em sala, as fontes formais são meros veículos normativos das fontes materiais]
Quanto às fontes formais existem duas concepções ou versões:
1ª) POSITIVISTA OU VOLUNTARISTA: Para essa corrente a fonte formal é a vontade comum dos Estados, que pode ser expressa nos tratados e tácita nos costumes.
Entretanto, esta concepção é insuficiente para explicar uma das fontes do DI, que são costumes, vez que a norma costumeira, sendo geral, torna-se obrigatória para todos os Estados membros da sociedade, até mesmo para aqueles que não manifestaram sua vontade no sentido de aceitá-la, sendo obrigados a obedecê-la.
É a concepção mais adotada atualmente. Faz distinção entre as fontes formais e as fontes materiais. As fontes materiais são os elementos histórico, econômico e social que dão origem às fontes formais, que são as normas que regulam as relações entre as pessoas de DI.
Entretanto, as fontes materiais são estudadas apenas para sabermos as origens das fontes formais, porque elas não pertencem ao Direito Positivo, ao qual só interessa a fonte formal. Assim, a fonte formal é um simples reflexo da fonte material.
Os doutrinadores têm sido unânimes na apresentação da imagem do curso de água para distinguir as fontes formais das fontes materiais. Observam eles que, se seguirmos um curso de água, encontraremos a sua nascente, que é a sua fonte, isto é, o local onde surge a água. Esta é a fonte formal. Todavia, existem diversos outros fatores (ex.: composição do solo, pluviosidade, etc.) que fizeram com que a água surgisse naquela região. Esses elementos que provocam o aparecimento das fontes formais são denominados de fontes materiais.
Assim se classificam as fontes de DIP, segundo QUADRI:
a) fontes primárias: são aquelas que orientam, norteiam a ordem jurídica internacional. É o que se chama de princípios. São os princípios constitucionais da ordem jurídica internacional.
- pacta sunt servanda (o tratado deve ser cumprido)
- consuetudo est servanda (respeito ao costume e à norma costumeira).
- princípio da interdependência do Estado, e
- princípio da permanência e continuidade do Estado.
O novo governo para ser reconhecido deve declarar que manterá os compromissos constitucionais vigentes.
b) fontes secundárias: são os tratados e costumes baseados nos princípios constitucionais. Em outras palavras, têm fundamento nas fontes primárias.
c) fontes terciárias: são as outras fontes. Se apoiam nas fontes secundárias. Exemplos: atos unilaterais, atos convencionais, atos mistos.
QUANTO AO ENUNCIADO DAS FONTES:
As fontes formais do DI encontram-se enunciadas num texto em vigor, que é o ESTATUTO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, o principal Tribunal das Nações Unidas, que as utiliza na solução dos litígios que lhe são apresentadas. Não é o Poder Judiciário face à descentralização da Ordem Internacional.
O art. 38 do Estatuto da CIJ enumera as fontes formais do DIP:
a) CONVENÇÕES INTERNACIONAIS - Regras
b) COSTUME INTERNACIONAL
c) PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO RECONHECIDOS PELAS NAÇÕES CIVILIZADAS (Europa, Estados Unidos e América Latina)
d) AS DECISÕES JUDICIÁRIAS E AS DOUTRINAS DOS PUBLICISTAS QUALIFICADOS (com ressalva do art. 59)
Pode, ainda, a Corte decidir uma questão ex aequo et bono se as partes com isso concordarem. É a decisão por equidade (só entre as partes), mas só com a concordância das partes.” Referência:
Fenômeno Convencional: A Personalidade Jurídica Internacional
“Professor Guido Soares
۩. Introdução
O conceito de sujeito de direito, em qualquer ordenamento jurídico, é o reconhecimento por ele operado, daquelas pessoas, indivíduos ou coletividades de indivíduos, ou mesmo outros determinados fenômenos, que são titulares de direitos e obrigações. A personalidade jurídica é um “status” conferido pelo sistema jurídico a pessoas ou entidades, através de uma qualificação operada por critérios determinados exclusivamente pelo próprio sistema jurídico, os quais, além de definir quais fenômenos constituem um sujeito de direito, ainda fixa-lhes os conteúdos e a extensão dos respectivos direitos e obrigações. Como qualquer definição no campo do direito, trata-se de uma operação normativa concomitante: uma tipificação e também uma criação, uma atribuição de direitos e deveres ao tipo de titular assim definido. Contudo, não é qualquer conceito, criação organizacional, ou situação que merecem ser tratados como sujeitos de direito, mas tão somente aqueles fenômenos que o ordenamento jurídico, de maneira formal, reconhece como tais.
Trata-se, pois, de uma criação no mundo normativo, levada a cabo, com exclusividade, pelas normas jurídicas, que, na sua atuação, independem de qualquer outra linguagem (neste sentido, o direito é uma linguagem que se autobasta), como o da Sociologia, Economia ou da Ciência Política, nomeadamente, da Política Internacional. Assim sendo, o conceito de “atores internacionais”, extremamente importante na Política Internacional, sem dúvida mais generoso e mais rico de conseqüências que o de “sujeito de Direito Internacional”, não tem qualquer serventia para o Direito Internacional Público. Não se pode negar a importância da mídia internacional nas relações internacionais, mas esta é uma realidade inexistente no Direito Internacional, da mesma forma que os partidos políticos ou as empresas multinacionais. Por outro lado, um movimento de libertação nacional, como a Organização de Libertação da Palestina, tem uma realidade no Direito Internacional, como se verá a seguir, não porque seja um relevante ator internacional, mas unicamente porque o Direito Internacional lhe confere alguns atributos de “sujeito de Direito Internacional”.
Ser sujeito de Direito Internacional, não se confunde com a situação de ser destinatário de suas normas, nem com as entidades ou fenômenos que possam estar nelas mencionados, a título de proteção ou de evitar-se sua presença. Parece-nos que os conceitos de sujeito ativo e sujeito passivo sejam problemáticos em Direito Internacional, uma vez que, conquanto as normas jurídicas tutelem os interesses e até mesmo os direitos subjetivos ou as obrigações de determinadas pessoas, não significa terem as mesmas o atributo de sujeito daquele Direito. É o caso, cada vez mais freqüente, devido à globalização vertical crescente na atualidade, de as normas internacionais mencionarem, diretamente, as pessoas nos ordenamentos internos dos Estados, em quem se canalizam os direitos e deveres; a exemplo, o explorador de uma central nuclear, o proprietário do navio, os responsáveis por um estabelecimento comercial ou de pesquisa (em questões de responsabilidade civil, respectivamente, por danos nucleares, por poluição marinha por óleo e por lançamento ao meio ambiente de produtos a este danosos). Por outro lado, seria um rematado absurdo atribuir-se personalidade jurídica aos ursos polares, aos animais e plantas em perigo de extinção, e mesmo a cavernas, formações corais, montanhas, monumentos históricos, obras de arte, fenômenos esses que, no entanto, se encontram expressamente tutelados em inúmeras convenções internacionais, das quais mencionamos a CITES[1] e a Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Natural e Cultural da Humanidade, assinada em Paris (UNESCO), a 1972[2].
Da mesma forma, conceitos bastante atraentes, como “humanidade”, “comunidade internacional”, aparentemente seriam sujeitos de Direito Internacional, caso partíssemos do pressuposto de que a mera constância em tratados e convenções internacionais, lhes pudesse conferir a personalidade jurídica! Na verdade, a humanidade tem reconhecido “seu interesse”[3] e conta mesmo com um seu “patrimônio comum”[4], conforme expressamente dispõem tratados e convenções internacionais, bem como a “comunidade de Estados no seu conjunto”[5] tem seus poderes jurídicos. Mas nem porisso, são tais entidades pessoas de Direito Internacional Público, pela simples razão de que este Direito não lhes reconhece tal atributo.
O fato é que a atribuição de uma personalidade jurídica a qualquer fenômeno, além de ser uma operação de individualização realizada pelo Direito Internacional Público, segundo seus exclusivos critérios, os quais são determinados pelas suas normas, essas, reveladas pela interação de suas fontes, é, igualmente, uma operação que atribui, não de maneira automática, mas segundo critérios igualmente normativos, determinados direitos e deveres, na medida e na extensão em que tais normas igualmente os definem. Conforme veremos, as organizações intergovernamentais e a pessoa humana, na atualidade, são sujeitos de Direito Internacional, mas não têm os mesmos poderes e não gozam da plenitude dos direitos e deveres atribuídos aos Estados, tendo em vista que as normas do Direito Internacional lhes trata de maneira substancialmente diferenciada.
۩. Os Estados
O Estado é uma forma de organização da sociedade, que emergiu, de maneira espontânea, no momento histórico em que o poder de um governante se tornou exclusivo sobre um território, passando as pessoas e coisas a serem submetidas a seu poder jurisdicional, em virtude de dois vínculos possíveis, concomitantes ou exclusivos: uma simples situação de nele estar e por possuírem sua nacionalidade. A realidade jurídica e política que é o Estado, nascido no Séc. XVI, conforme já expusemos, teria um posterior desenvolvimento na história das instituições e fatos sociais, em direção a uma despersonificação do poder, ao mesmo tempo em que se estabeleciam limites à abrangência territorial e pessoal das suas competências.
Existe uma definição formal do Estado, na Convenção Panamericana de Montevidéu de 1933 sobre Direitos e Deveres dos Estados (no Brasil promulgada pelo Decreto no 1.570 de 13/04/19370), assim redigida: “O Estado, como pessoa de Direito Internacional, deve reunir os seguintes requisitos: a) população permanente; b) território determinado; c) Governo; e d) a capacidade de entrar em relações com os demais Estados”. Na doutrina, inexiste discrepância quanto à três primeiras condições da personalidade internacional dos Estados; quanto ao quarto, parece que a capacidade de entrar em relação com outros Estados é mais uma conseqüência da personalidade do que propriamente um elemento constitutivo da mesma. Outras teorias acrescentam o reconhecimento internacional do Estado como um elemento de sua personalidade; a nosso ver, embora seja um fator importante para o exercício da plenitude de seus poderes, contudo, o reconhecimento não é um ato constitutivo, pois a ninguém ocorreria atribuir a existência da República Popular da China, somente a partir de 1971, data de sua admissão na ONU[6], a mais clara e formal expressão daquele reconhecimento internacional! Tais pontos, como outros relativos ao nascimento do Estado, serão examinados no Cap. 11 do presente Curso.
Para o Direito Internacional da atualidade, o Estado apresenta-se como uma pessoa indivisa, independentemente de sua organização interna, seja esta na forma de Estados unitários ou Estados federais. Outras formas como as uniões pessoais ou reais[7] ,destas últimas, com destaque para as confederações de Estados[8], existentes em séculos passados, desapareceram na atualidade. A questão do tipo de organização interna dos Estados é assunto que refoge ao Direito Internacional, constituindo-se o denominado “domínio reservado dos Estados”, mas ainda permanecem algumas questões que merecem ser citadas: o caso dos EUA (que, segundo o seu direito interno, admitem a possibilidade dos Estados federados subscreverem tratados internacionais com os vizinhos, em assuntos de competência dos mesmos e não da União), do Canadá (a Província de Quebec mantém uma embaixada em Paris) e os casos da Bielorússia (Rússia Branca) e Ucrânia, que ao tempo da existência da URSS, tinham assento, com voz e voto, juntamente com esta, nos órgãos da ONU, salvo no Conselho de Segurança, que era ocupado exclusivamente pela URSS. Restou de tais fenômenos, em que um Estado, em princípio, poderia apresentar-se com várias representações frente ao Direito Internacional, e para evitar-se tal fenômeno, em particular para as eventualidades de um Estado querer subtrair-se às obrigações de um tratado multilateral, ao invocar sua organização constitucional interna, como composto de entidades soberanas, emergiu a prática da denominada “clausula federal”: os Estados signatários de tratados, em virtude da mesma, comprometem-se a aplicar as normas avençadas, para qualquer eventual partição política ou jurídica que exista no interior de seu ordenamento jurídico nacional[9].
Associado ao Estado como pessoa de Direito Internacional, acha-se o conceito de soberania (que não deve ser confundido com “governo”), elemento que realiza a interdependência recíproca e necessária entre os três elementos componentes do Estado. Há uma distinção de certa forma didática, mas discutível quando à sua virtualidade, pois introduz fissuras num conceito tão compacto quanto o de soberania e faz supor duas realidades mutuamente impenetráveis uma noutra (o interno e o internacional); soberania interna (exclusividade de poderes normativos e de ação política no relativo ao sistema jurídico interno) e soberania externa (elemento que mais precisamente definiria a personalidade do Estado, no universo das relações internacionais e que marcaria sua individualidade). Os contornos conceituais do que seja soberania têm variado ao longo da história, e refletem as variações da própria concepção das finalidades e da gênese do Direito Internacional: um poder ilimitado, que mal conviveria com a presença de outros Estados, na medida em que representava a vontade dos monarcas absolutistas, um poder auto-limitado (evidentemente numa concepção que desprezava o fenômeno limitações inerentes num relacionamento internacional e se centrava num fenômeno isolado da vontade de um super-poder, ao gosto de um Hegel) e de um poder absoluto, limitado desde afora, por um conjunto mínimo de regras de autocontenção (concepção dominante no Séc. XIX e que teria uma expressão extemporânea com o Caso Lotus). Neste Caso, julgado em 1927 pela CPJI, a França, inconformada com a condenação do comandante francês do navio Lotus, que tinha abalroado em alto mar um vapor turco e causado a morte de marinheiros desta nacionalidade, discutia se a Turquia poderia, segundo o Direito Internacional, ter exercido sua jurisdição penal, para punir crimes cometidos em alto mar contra nacionais deste país[10]. A sentença da CPJI foi no sentido de que inexiste regra de Direito Internacional que proíba um Estado estender sua jurisdição penal a fatos ocorridos em alto mar (a CPJI considerou, de modo muito estranho, que o crime teria, por uma ficção, ocorrido em território turco: o navio desta nacionalidade), e, na parte em que tem sido criticável, por voto de desempate do seu presidente, deu como razão de decidir, o argumento de que os Estados tudo podem, salvo aqueles comportamentos expressamente proibidos pelo Direito Internacional.
Contudo, por mais avassalador que tenha sido a introdução do conceito de interdependência, tida como condição necessária nas relações internacionais e a afirmação da tônica da cooperação como um dos traços primordiais do Direito Internacional, ainda permanecem firmes, em primeiro lugar, os conceitos que constituem os pressupostos daquele Direito, ou seja, a soberania dos Estados e sua independência, e em segundo, a existência de deveres internacionais correlatos a tais situações subjetivas. No que diz respeito a deveres internacionais, que limitam os poderes dos Estados, são eles referíveis ao exercício da competência territorial ( a) não ingerência nos negócios internos de outros Estados e b) ao estabelecimento de restrições a atividades que importam numa utilização imoderada dos respectivos territórios) e ao exercício da competência sobre pessoas e bens sob a jurisdição dos Estados. Tais fenômenos serão estudados, respectivamente, nos Capítulos 13 e 14 desta obra.
A nosso ver, uma descrição dos direitos e deveres dos Estados, decorrentes de sua personalidade de Direito Internacional, melhor seria enfocada, a partir de uma comparação com os poderes e faculdade de outras pessoas de direito internacional, em particular, as organizações intergovernamentais. Para tanto, adotaremos a enumeração do que o Prof. P-M. Dupuys[11] denomina de “capacidades internacionais do Estado”, arroladas em “cinco categorias fundamentais”, e acrescentaremos nossas observações.
A primeira categoria, é a “capacidade de produzir atos jurídicos internacionais”. Neste particular, é lapidar os conceitos expedidos no julgamento da CPJI em 1923, no Caso do Vapor Wimbledon, “verbis”: “Sem dúvida, qualquer convenção... aporta uma restrição ao exercício dos direitos soberanos do Estado, no sentido de que ela imprime a este exercício uma direção determinada. Mas a faculdade de contratar compromissos internacionais é precisamente o atributo da soberania do Estado”. Somente os Estados têm o poder de instituir obrigações válidas “erga omnes”, através de tratados ou convenções internacionais, conforme regulados pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969. São tais atos as fontes mais claras do Direito Internacional Público e os limites à iniciativa dos Estados são praticamente inexistentes, na consciência generalizada atual, apenas determinados pelas normas do “jus cogens”. As organizações intergovernamentais podem obrigar-se através de atos menos solenes, em geral bilaterais, que criam obrigações restritas, tendentes a ser atos administrativos de execução de tarefas pactuadas (e menos atos de criação de normas gerais) entre de um lado, estas pessoas, e de outro, os Estados[12] ou outras organizações intergovernamentais[13]; sua atuação em matéria normativa, nos poucos casos que há, produz, como já visto, normas unilaterais de Direito Internacional, cujos efeitos “interni corporis” ou “erga omnes”, são estritamente regulados pelas normas dos tratados multilaterais, em particular, os tratados-fundação.
A segunda categoria é a “capacidade de verem-se imputados fatos ilícitos internacionais”, ou melhor dito, a capacidade de os Estados integrarem como partes, as obrigações internacionais de reparação de danos, originadas de um ilícito internacional, (danos decorrentes de ações ou omissões, que acarretem uma violação de uma obrigação internacional e causem um dano a outro Estado), seja no pólo do devedor, seja no pólo de credor das obrigações. Quanto às organizações intergovernamentais, o assuntos é polêmico, no que se refere a situações em que as obrigações de reparação de danos devidas a Estados, lhes é imputável: em geral, nos tratados-fundação ou em outros atos multilaterais que definem a personalidade da organização intergovernamental, há dispositivos sobre a existência e limites à sua responsabilidade civil e administrativa (neste último aspecto, devendo-se dizer da existência de um Tribunal Administrativo na OIT e na ONU, para as questões trabalhistas e previdenciárias entre as organizações e seus funcionários).
No que se refere à imputabilidade de atos ou fatos a pessoas de direito interno, indivíduos ou empresas, é necessário distinguir tratar-se: a) da responsabilidade tradicional dos Estados (responsabilidade subjetiva, ou por culpa), onde inexiste a possibilidade de presença do indivíduo ou empresa privada como um dos pólos de relacionamento com os Estados, ou b) da responsabilidade objetiva ou por risco, também denominada “responsabilidade por atos não proibidos pelo Direito Internacional”, criação recente de tratados multilaterais no domínio da proteção do meio ambiente, a partir dos anos 1960, na qual a regra internacional, ou canaliza a responsabilidade no Estado causador do dano (Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, adotada em Londres, Moscou e Washington, a 22 de março de 1972 e no Brasil promulgada pelo Decreto nº 71.981 de 22/III/1972), ou institui a norma de canalizar a responsabilidade em pessoas de direito privado (casos de poluição do mar por óleo, por danos nucleares, pelo transporte marítimo de substâncias perigosas, e muito recentemente, por questões relativas à biossegurança[14], sem contar aquelas de âmbito regional sobre assuntos tópicos). A questão será esmiuçada no Cap. 9 desta obra.
A terceira categoria constitui a “capacidade de acesso aos procedimentos contenciosos internacionais”, seja os diplomáticos (negociações, bons ofícios, mediação, procedimentos investigatórios e conciliação) seja os jurisdicionais (arbitragem e acesso irrestrito e por direito próprio, aos procedimentos dos tribunais internacionais da atualidade). As organizações intergovernamentais, como pessoas de Direito Internacional, podem servir de foros onde aqueles procedimentos são levados a cabo, e seus órgãos, em particular os unipessoais, como o Secretário Geral da ONU, podem ser os agentes de aplicação dos citados procedimentos diplomáticos: destaque-se, ademais que a CIJ é um órgão da ONU. Num caso que envolveu uma dúvida da Assembléia Geral da ONU, sobre a possibilidade de um pedido de reparação de danos causados a um funcionário da ONU, intentadas contra um Estado, a CIJ, no Parecer Consultivo sobre Reparação de Danos Sofridos a Serviço das Nações Unidas, de 11/04/1949, por vezes referido como “Caso Bernardotte”[15], reconheceu a personalidade jurídica da ONU, e que portanto pode introduzir uma reclamação contra Estados, nos casos de danos causados a seus funcionários (a título de danos causados à própria organização, tendo reconhecido existirem direitos inerentes a uma “proteção funcional, assimilável ao da “proteção diplomática”, tradicional, que os Estados conferem a seus nacionais e que permite a estes assumir como deles, os direitos subjetivos a uma reparação, conferidos a pessoas físicas ou jurídicas). Contudo, as organizações internacionais não podem integrar os pólos ativos ou passivos dos procedimentos em que um Estado esteja envolvido (pense-se numa arbitragem entre a ONU e um Estado!) e no caso da CIJ, a jurisdição deste tribunal internacional, no caso de um litígio entre uma organização intergovernamental e um Estados ou outras organizações intergovernamentais, se restringe à emissão de Pareceres Consultivos, conforme art. 34 § 1o e art. 65 §1o e 2o, todos do Estatuto. Excetuam-se os casos das integrações econômicas regionais do tipo mercado-comum, como se sabe, nas quais existem tribunais regionais onde se admitem como partes os Estados Membros, os órgãos das organizações intergovernamentais e pessoas físicas ou jurídicas, bem como o caso do Tribunal Internacional do Mar, instituído pela Convenção de Montego Bay sobre o Direito do Mar, de 1982. No caso da pessoa humana, seu acesso a procedimentos arbitrais contra Estados e em procedimentos judiciários em tribunais internacionais, será melhor visto na Seção 7.3 deste Capítulo, mais além.
Na quarta categoria, inclui-se a “capacidade de tornarem-se membros e de participar plenamente da vida das organizações internacionais intergovernamentais”. A plenitude de tais direitos diz respeito à possibilidade de integrar os membros componentes de órgãos colegiados de tais organizações intergovernamentais, e o direito de compor a formação da vontade das mesmas (direito a voz e voto), devendo observar-se, contudo, que tais direitos podem estar condicionados pelas normas dos tratados fundação das organizações intergovernamentais. Pode dizer-se que as delegações de organizações intergovernamentais junto a outras organizações intergovernamentais, não possuem aqueles direitos frente a estas e, na maioria das vezes, seus delegados são acreditados nas reuniões ordinárias ou extraordinárias, na qualidade de meros observadores, sem direito a voz e voto.
E, enfim, a quinta categoria, “a capacidade de estabelecer relações diplomáticas e consulares com outros Estados”, denominado direito de legação, resulta no direito de enviar representantes próprios junto a outros Estados ou organizações (direito de legação ativo) e no dever de receber e acreditar representantes de outros Estados em seus territórios (direito de legação passivo); tal capacidade dos Estados é uma das mais tradicionais, atualmente regulada por duas Convenções multilaterais: de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 e de Viena sobre Relações Consulares de 1963, além de um relevante costume internacional e de um tratamento generalizado nas legislações internas dos Estados. Na atualidade, a capacidade de estabelecer relações diplomáticas (não porém relações consulares), é uma faculdade conferida, igualmente, a organizações intergovernamentais, porém com limitações quanto a assuntos e interesses das pessoas representadas e sem a totalidade dos privilégios e imunidades conferidos aos representantes de Estados.
Acreditamos que existem outras categorias de capacidades internacionais do Estado. Uma que merece destaque é a de exercer, frente a outros Estados, uma efetiva e legítima proteção a pessoas físicas e jurídicas que os Estados consideram como seus nacionais. Tais faculdades, decorrentes de um forte vínculo que existe entre o Estado e tais pessoas, a nacionalidade, expressam-se nos institutos da proteção diplomática e nos direitos de estabelecimento de relações consulares, fenômenos bastante claros no Direito Internacional, profusamente reveladas por várias de suas fontes. Quanto a tais faculdades conferidas às organizações intergovernamentais, inexiste entre as mesmas e as pessoas físicas ou jurídicas a ela diretamente relacionadas, conexões tão fortes como a nacionalidade; trata-se de um tipo de vinculação de caráter contratual (contratos de trabalho ou contratos administrativos entre a organização e seus funcionários), que institui o que o referido Parecer Consultivo da CIJ no Caso Bernardotte denominou de “proteção funcional” (o funcionário da organização ou as pessoas físicas ou jurídicas que se vinculam com a organização internacional), as quais retiram sua validade de normas especiais (os tratados fundação e os atos unilaterais de caráter normativo baixados pelas organizações intergovernamentais).
A SOBERANIA DOS ESTADOS
Perante a nova realidade internacional, a soberania estatal deve ser vista em função da sua capacidade de ação interna (submissão da massa humana – obediência civil) e ação externa (expressão do poder):
Então, lembramos da teoria sobre o Poder: Viu-se que o poder é composto pelo:
a) Império, assembléia dos fortes: (ativo- forças armadas; passivo- justiça). Ativo é a sua concentração, passivo é a sua dispersão.
b) Dieta, assembléia dos produtores: (ativo- capitalistas; passivo- operários). Oikos nomia: regras da casa;
c) Igreja, assembléia dos sábios: (ativo- cultura; passivo- tradição). Cultura enquanto produção de objetos culturais e tradição enquanto objetos que tenham sido transmitidos entre gerações.
Conhecidos os tipos existentes de Poder (capacidade de destruir, construir e conduzir), notou-se que não seria possível a existência do Direito se não houvesse a participação desses tipos ideais. Ou seja: uma decisão jurídica não será respeitada se não tiver força, poder. Um Estado não terá soberania sem Poder. Importante lembrar o Poder de Igreja e sua capacidade decisória, principalmente em relação à Formação de Consenso (conforme texto já fornecido).
۩. As organizações intergovernamentais e as Ongs
As organizações intergovernamentais, juntamente com as organizações não governamentais, as denominadas ONGs, são criaturas resultantes da vontade dos Estados ou de pessoas de direito interno, que, à semelhança do que ocorre nos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados, têm uma existência como uma pessoa coletiva, que não se confunde com os indivíduos ou as entidades que as constituíram ou que as compõem. Na verdade, no Direito Internacional tradicional, sobretudo na doutrina, quando existe referência a organizações coletivas instituídas por Estados e integradas por seus representantes, diz-se “organização internacional”, talvez porque as ONGs somente após 1960 se tenham tornado mais atuantes, como relevantes atores internacionais e, portanto, os questionamentos sobre sua personalidade jurídica se tenham suscitado com mais freqüência. Contudo, são realidades que emergiram, na História, nos finais do Séc. XIX, as organizações intergovernamentais têm crescido em importância, dadas as necessidades impostas pelas realidades e os deveres de cooperação entre Estados e as ONGs, por uma expansão das facilidades de intercâmbio de pessoas e de informações técnicas e científicas, correlatas a um natural associativismo da pessoa humana, em particular, à vista da maior eficácia na defesa de interesses comuns, em quaisquer partes do mundo, quando empreendida por ações coordenadas. ***
Tantos as organizações intergovernamentais quanto as ONGs, resultam de um ato de vontade, no primeiro caso, de Estados, consubstanciados num tratado ou convenção multilaterais, estritamente regulados pelo Direito Internacional, e no segundo, de atos instituidores, celebrados entre particulares, com ou sem a interveniência de órgãos públicos, regidos por leis internas de algum Estado.
Ora, como se sabe, os fenômenos volitivos, para que possam produzir efeitos jurídicos, necessitam do reconhecimento de tais virtudes, por uma norma jurídica, que se encontra fora do sistema obrigacional instituído pela vontade (pois se a vontade fosse suficiente para ela mesma produzir efeitos jurídicos, bastaria ela mesma declarar serem válidos suas manifestações, o que haveria uma petição de princípio de dar-se por provado, o que se necessita provar). A nosso ver, a simples declaração, num tratado fundação de que uma organização intergovernamental tem personalidade jurídica, não é suficiente para conferir-lhe tal “status”, nem para, de tal fato, seguirem-se atribuições de capacidades indeterminadas no campo do Direito Internacional.
No caso das organizações intergovernamentais, há o costume internacional, de os Estados reconhecerem a personalidade jurídica das mesmas, de maneira indireta, como comprovam os atos celebrados entre os Estados anfitriões das sedes ou das reuniões celebradas em seus territórios (nos quais se reconhecem responsabilidades civis, administrativas e financeiras às organizações intergovernamentais, se outorgam privilégios a bens e serviços das organizações intergovernamentais, ao pessoal a seu serviço e às suas comunicações oficiais com o exterior). Em todos os Estados, pelo menos naqueles em que existem representações diplomáticas das organizações intergovernamentais, há dispositivos que reconhecem as mesmas como pessoas jurídicas, o que configura um princípio geral de direito. Como se não bastassem tais fontes do Direito Internacional, ainda, em 1949, a CIJ, no citado Parecer Consultivo no Caso Bernardotte, afirmaria que a ONU, “sendo titular de direitos e obrigações, possui, numa larga medida, uma personalidade internacional e tem capacidade de agir no plano internacional, ainda que não seja ela, por certo, um super-Estado”.
Em um trabalho anterior[16], em que analisamos as ONGs, dado que estas organizações se definem de modo negativo em relação às organizações intergovernamentais (então abreviadas para OIs), traçamos os elementos característicos destas, que agrupamos em três, nos seguintes termos:
...o primeiro traço característico de uma OI é sua instituição através de um tratado ou convenção internacional[17], bilateral ou, como regra, multilateral, que, por sua natureza, constitui o ato fundador daquela; o conteúdo de tal tratado ou convenção pode ser variado, seja de simples instituição de uma OI, seja de normas de finalidades variadas, junto das quais se constitui uma organização “ad hoc” para a aplicação das mesmas. Dado seu caráter fundador, tais tratados ou convenções, por vezes levam o nome de Carta, Constituição, Pacto, ou Estatuto. Contudo, nem sempre a existência de um tratado-fundação, é condição para que uma OI passe a gozar de uma personalidade jurídica reconhecida pelo Direito Internacional Público (inda que sem aquela plenitude de poderes, situação somente concedida aos Estados, individualmente), conforme se pode provar pela empresa Itaipu Binacional, entidade instituída por um tratado internacional entre o Brasil e Paraguai e que, no entanto, não se constitui como organização intergovernamental (mesmo porque aqueles tratados dispuseram tratar-se de empresa de prestação de um serviço público, a geração de energia elétrica, a partir de potenciais hidrelétricos havidos em comum entre ambos os países, com seu capital integralizado por quotas fornecidas por pessoas jurídicas de direito público interno de cada país), conquanto seu Estatuto seja um ato internacional interestatal[18].
Ainda conforme a doutrina generalizada dos internacionalistas, a segunda característica de uma OI é possuir ela, na sua inteireza ou pelo menos, em algum de seus órgãos, poderes decisórios que não dependem da vontade de nenhum Estado em particular: a vontade de tal órgão deve representar uma decisão da pessoa coletiva, estabelecida segundo procedimentos fixados nas normas de seu tratado-fundação. Tal capacidade de tomar decisões e elaborar normas, independentemente da vontade individual de dois ou mais Estados, é o elemento que mais distingue uma OI, daqueles órgãos instituídos em acordos bi- ou multilaterais, em que se instituem Comissões Mistas, compostas de funcionários de cada Estado-parte.
Nas OIs, conquanto haja órgãos unicamente compostos de funcionários estatais (integrados pelos delegados dos Estados partes, nas reuniões ordinárias ou extraordinárias[19]), mesmo naqueles casos em que as decisões se encontram alocadas a certos Estados (critérios de votos ponderados ou de procedimentos que privilegiam determinados Estados, como no caso do Conselho de Segurança da ONU), suas decisões são atribuídas a uma entidade coletiva com personalidade distinta dos Estados componentes da mesma.
Por outro lado, nem a possibilidade de existirem colegiados que se reúnem ordinariamente em datas marcadas, compostos de funcionários estatais, nem a existência de um corpo permanente de funcionários internacionais, em princípio desligados de qualquer subordinação àlgum Estado[20] parte de um tratado bi- ou multilateral, tidos como pessoas a-nacionais, são fatores que, necessariamente, garantam tratar-se de uma OI.
A nova engenharia normativa dos tratados multilaterais de proteção internacional ao meio ambiente, consubstanciada na adoção generalizada dos tratados-quadro[21] (tratados constituídos de normas gerais e vagas, cujo conteúdo é estabelecido ou especificado em deliberações tomadas em reuniões periódicas dos Estados partes, as Conferências das Partes, estas, portanto com iguais poderes que os plenipotenciários, no momento da adoção daqueles tratados-quadro), bem como a existência de inúmeros secretariados internacionais, com extensos poderes em relação aos Estados partes (sobretudo quanto à verificação de adimplemento das normas internacionais ou ainda, à segurança e uniformidade na sua aplicação[22]), nem sempre transformam aquelas reuniões periódicas de delegados de Estados, ou aqueles secretariados, em componentes de uma organização internacional.
O terceiro elemento caracterizador das OIs, é o fato de serem elas regidas pelo Direito Internacional Público, e não por qualquer direito nacional de algum Estado. Sobretudo, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, tem sido admirável a proliferação de entidades criadas entre Estados, para fins de controlar ou diretamente prestar serviços públicos, que, pela sua natureza, extrapolam os seus territórios e, portanto, exigem uma regulamentação em nível internacional. Entidades internacionais são estabelecidas, seja por acordos entre Estados, seja por atos das respectivas Administrações (direta ou indireta), consubstanciados em atos por eles delegados.
Na verdade, a teoria e a realidade das OIs têm tido, nos últimos anos, um desenvolvimento extraordinário, não só no capítulo das integrações físicas ou econômicas entre Estados, como, em particular, no desenvolvimento de entidades da administração indireta, com a instituição de inúmeros estabelecimentos públicos internacionais[23], alguns, em franco desafio à teoria já assentada do Direito das Organizações Internacionais.
Quanto às ONGs, reafirmamos o que dissemos em linhas anteriores: o fato de estarem mencionadas em tratados internacionais e instituídas como espécie de órgãos de implementação e supervisão de normas pactuadas (e caso tivesse havido a instituição de qualquer organização intergovernamental, seriam assimiláveis aos Secretariados das mesmas), não lhes confere a personalidade de direito internacional. Tal é o caso da União Internacional para a Conservação da Natureza e seus Recursos, IUCN([24]), criada, em Fontainebleau, em 1948, sob a égide da UNESCO, e por inspiração do Governo francês[25], a qual, na atualidade, dada subscrição da Convenção de Ramsar de 1971, "relativa a Zonas Úmidas de Importância Internacional.
Particularmente como Hábitat das Aves Aquáticas" (e seu Protocolo de 1982)[26], passou a ser encarregada, oficialmente, de exercer, em caráter provisório, (que se prolonga até os dias atuais), as funções de seu Secretariado e, a partir de 1972, por disposição da Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial e Cultural, adotada em Paris, sob a égide da UNESCO[27], (art. 8º § 3º), passou a ter assento assegurado no Comitê do Patrimônio Mundial desta organização intergovernamental, com importantes funções oficiais consultivas. Relembre-se, enfim, que mesmo com a relevância das ONGs especializadas em Direito Internacional, como o “Institut de Droit International” ou a “International Law Association”, no que respeita à formação da doutrina coletiva do Direito Internacional, nem porisso possuem tais entidades uma personalidade internacional.
Neste particular aspecto, merece destaque o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o CICV, entidade de Direito suíço, responsável pela proposta de negociações de importantes convenções multilaterais sobre Direito Humanitário, e encarregada, por expressa determinação dos Estados, nas 4 Convenções de Genebra de 1947 e nos seus 2 Protocolos de 1974, de importantes funções internacionais, a ponto de hoje ser pacífico, na doutrina internacionalista[28], o reconhecimento de sua personalidade internacional, conquanto não seja um organização pública interestatal. Veja-se, neste Curso, em particular, no Cap. 15, a Seção 3, denominada “O Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados”.
۩. A pessoa humana
Houve dúvidas quanto a atribuir-se uma personalidade jurídica à pessoa humana, em época recente. Na verdade, Estados e organizações intergovernamentais, não são entidades abstratas e impossíveis de serem individualizadas, como é a “pessoa humana”. Por outro lado, à vista de faltarem à pessoa humana alguns dos atributos que enunciamos como “as cinco categorias fundamentais” da personalidade jurídica em Direito Internacional, tão evidentes no que se refere aos Estados, com destaque à impossibilidade de seu acesso a procedimentos judiciais de solução de litígios entre pessoas jurídicas, nomeadamente as arbitragens e a legitimidade ativa ou passiva, por direito próprio a procedimentos frente a tribunais judiciários internacionais, levou autores de nomeada a negarem ter a “pessoa humana” uma personalidade de Direito Internacional.
Havia, no entanto, situações constrangedoras, que negavam o postulado daqueles autores, que se baseavam no pressuposto de um voluntarismo “in extremis”, de que o Direito Internacional seria um direito unicamente de relações entre Estados, e portanto, as únicas pessoas reconhecidas seriam os próprios Estados e as organizações coletivas que eles instituem, as organizações intergovernamentais.
Aquelas situações desafiadoras eram os casos de constância nas normas internacionais, de dispositivos que disciplinavam ações de indivíduos, como as mais antigas, de proibições de tráfico de escravos ou de atos de piratas e de corsários, sobre o comportamento de soldados em tempo de guerra, e mais modernamente, sobre atos de terrorismo internacional, dos mercenários internacionais a soldo de qualquer governo, de tráfico transfronteiriço de obras de arte e de espécies e espécimes de plantas e animais em perigo de extinção, da responsabilidade dos comandantes de navios e aeronaves; além destes casos individuais, havia a emergência de um inteiro setor do Direito Internacional, com uma força normativa inacreditável, que a partir da instalação da ONU, em 1945, ganhava mais e mais vigor: a proteção internacional dos Direitos Humanos, com uma engenharia normativa extremamente bem construída e dotada de mecanismos de verificação de seu adimplemento, sobretudo em níveis regionais.
As respostas daqueles autores, a fim de serem coerentes com sua concepção voluntarista do Direito Internacional, foi de que em tais casos, a pessoa humana seria um objeto do Direito Internacional, o que é uma negação de toda tradição da Ciência Jurídica e do Direito como Justiça, como se o homem pudesse ser um mero objeto desta admirável construção normativa que é o Direito, a qual foi lapidarmente definida por Dante como “uma proporção entre coisas e pessoas, do homem e para o homem, a qual, observada, conserva a sociedade humana e, corrompida, a corrompe”[29].
A nosso ver, o simples fato de aquelas pessoas, tão díspares e contraditórias no referente ao valor de sua atuação, como, de um lado, os terroristas, os mercenários, os piratas e corsários, ou os contrabandistas, e de outro lado, os comandantes de navios e aeronaves, os operadores de centrais nucleares, ou responsáveis por atividades perigosas e potencialmente danosas ao meio ambiente, estarem mencionadas em normas internacionais, não lhes confere personalidade no Direito Internacional. As normas continuam tendo como destinatários, os Estados, com um conteúdo de agirem contra aquelas pessoas (obrigações de conduta) ou regularem, nos respectivos ordenamentos jurídicos internos (obrigações de resultado) as atividades das pessoas nomeadas na norma internacional. Não vemos porque tal fato teria o condão de configurar uma personalidade internacional àquelas pessoas mencionadas nas normas internacionais!
Por outro lado, as restrições ao exercício dos poderes das pessoas, ou seja, os limites a suas capacidades, não lhes diminui nem retira o “status” de pessoas de direito internacional. Um exame das citadas cinco categorias fundamentais, revela que, pela natureza mesma dos fenômenos, a pessoa humana, como entidade abstrata, nos tempos presentes, não tem quaisquer atributos para firmar tratados e convenções internacionais (1a categoria), nem para instituírem e serem membros plenos de organizações intergovernamentais (4a categoria), nem para representar-se a si mesma, por um direito próprio, perante Estados e organizações intergovernamentais (5a categoria, nomeadamente o direito de estabelecer relações diplomáticas com Estados e organizações intergovernamentais e relações consulares em territórios dos Estados).
Quanto a imputabilidade à pessoa humana de fatos ilícitos internacionais (2a categoria) e seu direito próprio a um acesso a contenciosos internacionais (3a categoria), é necessário rever o posicionamento tradicional, à vista da extraordinária emergência de normas de proteção à pessoa humana, a partir da instituição do sistema da ONU e do fortalecimento das mesmas em nível regional, em particular, no sistema normativo que se formou a partir da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, a 04 de novembro de 1950.
A nosso ver, na atualidade, as culminâncias no sentido de reconhecer-se personalidade à pessoa humana, são demonstradas por dois fatos, que confirmam a relatividade das 2a e 3a categorias de faculdades conferidas às pessoas, tradicionalmente reservadas aos Estados. Em primeiro lugar, a “instituição de um Tribunal Penal Internacional (Tratado de Roma de 17 de julho de 1998), de natureza permanente e jurisdição internacional, competente para conhecer e julgar os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes de agressão: nos dias correntes, à espera da entrada em vigor do tratado que o instituiu, o Tribunal será sediado na Haia, e terá uma jurisdição automática, ou seja, independentemente de qualquer aceitação “ad hoc” por parte dos Estados que dele farão parte, conquanto a matéria de sua competência esteja restrita aos crimes catalogados na Convenção de Roma, e não para qualquer outra violação de direitos humanos”[30].
Em segundo, a abertura da jurisdição de um tribunal internacional regional, antes unicamente aberto a reclamações de Estados contra Estados ou de um organismo diplomático, a Comissão Européia de Direitos Humanos, contra Estados, à pessoa humana, por direito próprio, sem necessidade de seus direitos serem assumidos por um Estado (através do instituto da proteção diplomática) ou pela referida Comissão; trata-se de um Protocolo firmado em 1994 (Protocolo 11) entre os Estados Partes da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, a 04 de novembro de 1950, o qual foi reforçado com a entrada em vigor do Acordo Europeu Relativo a Pessoas que participam nos Procedimentos da Corte Européia dos Direitos Humanos, firmado em Estrasburgo a 05 de maio de 1997, o qual suprimiu a Comissão Européia dos Direitos Humanos e deu legitimidade ativa à pessoa humana, em litígios judiciários contra os Estados (os das respectivas nacionalidades ou quaisquer outros, desde que, evidentemente, Parte naquele Tratado de Roma), por violações aos direitos humanos definidos na Convenção Européia de 1950 e suas modificações posteriores.
Por outro lado, conforme será examinado no Cap. 15 (em especial no Seção 15.1) da presente obra, há normas precisas em tratados e convenções multilaterais, de natureza universal, que concedem pleno direito a indivíduos ou entidades privadas de poderem acionar mecanismos de reclamações apresentadas a entidades internacionais, diretamente contra Estados, sejam da própria nacionalidade, sejam quaisquer outros, desde que violados os direitos humanos protegidos pelas normas internacionais.
Destaque-se o caso do Protocolo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, firmado a 16/12/1966, firmado no mesmo dia que o Pacto (sendo o Brasil parte do Pacto, que se encontra promulgado no país, pelo Decreto no 592 de 16/12/1992, mas não do Protocolo), em que o recebimento das reclamações de particulares contra Estados, exigem as condições do esgotamento prévio pela vítima dos recursos disponíveis nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados reclamados (na hipóteses de serem os mesmo existentes e disponíveis), a inexistência de procedimentos paralelos e semelhantes em outras instâncias internacionais e, enfim, a posterioridade da violação dos direitos humanos, quanto à vigência internacional do Protocolo, em relação ao Estado reclamado.
Semelhantes procedimentos encontram-se instituídos em dois instrumentos internacionais dos quais o Brasil é parte: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 (promulgado pelo Decreto no 65.810 de 08/12/1969), no seu art. 14, e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984 (promulgada pelo Decreto no 40 de 15/02/1991), no seu art. 22.
Portanto, a nosso ver, na atualidade, é indiscutível haver uma clara atribuição da personalidade de direito internacional à pessoa humana, com as restrições factuais e os condicionamentos legais que a norma internacional pode estabelecer (como, de fato estabelece, para qualquer outra pessoa de Direito Internacional, que não seja um Estado, reconhecido como tal por este Direito, inclusive as organizações intergovernamentais constituídas pelos Estados).
ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
“Definição
As Organizações Internacionais são associações de sujeitos de Direito Internacional, ou seja, constituídas por Estados. Decorrem do crescimento das relações internacionais e da cooperação necessária entre as nações. As organizações internacionais passaram a ter maior relevância a partir da criação da Liga das Nações.
Estas organizações têm como objetivo diversas questões, tais como: obtenção ou manutenção de paz, resolução de conflitos armados, desenvolvimento econômico e social etc.
As Organizações Internacionais nada mais são que tratados internacionais multilaterais que se prolongaram no tempo, com a criação de órgãos que trabalham no sentido de perpetuação desses tratados. São organismos e não Estados.
Paul Reuter estabeleceu uma definição para as Organizações Internacionais Intergovernamentais: é um conjunto de Estados que possuem órgãos próprios que podem exprimir vontade jurídica distinta da dos Estados.
Uma definição válida seria: “Organizações Internacionais são um conjunto de Estados possuidores de órgãos próprios, capazes de exprimir vontade jurídica distinta da de seus membros”.
a) Conjunto de Estados - organizações criadas pelos Estados, que começam a surgir a partir do século XIX; contudo, sua forma acabada somente apareceria após a criação da Liga das Nações, após o Tratado de Versalhes. Nascem a partir dos tratados internacionais.
b) Possuidor de Órgãos Próprios - têm estrutura política, administrativa e financeira independente e autônoma frente ao conjunto de seus membros.
c) Capaz de Exprimir Vontade Jurídica - essa vontade se exprime através de diversas formas peculiares a cada uma dessas organizações: convenções internacionais, tratados, resoluções etc.
d) Vontade Distinta da de Seus Membros - a não aprovação de uma resolução por um dos Estados-Membros não implica na não implementação desta. Não há a necessidade da unanimidade.
[1] Lembrar do texto “O Consenso sobre as Políticas Sociais na América Latina, Negação da Democracia?” disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v23n59/10.pdf >. Cairá na prova!
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