III. O Poder[1]
1. Observações gerais
2.
Só há três poderes neste mundo: produzir, destruir, conduzir. O primeiro é o poder econômico, o segundo o poder militar, o terceiro o poder espiritual. Roma consagrou-os, respectivamente, a Quirinus, Marte e Júpiter. Os três deuses defendem o homem contra as três ameaças fundamentais: a fome, a violência, o erro. O bem da sociedade depende inteiramente de que haja equilíbrio no culto que se consagra a essas divindades. O triângulo do poder tem de ser equilátero.
Cada um desses poderes tem um objeto sobre o qual se exerce e um sujeito que o exerce.
O objeto do poder econômico são os bens de natureza material. O do poder militar, o corpo humano e suas ações. O do poder espiritual, as idéias, crenças e sentimentos.
Seus sujeitos são respectivamente: a dieta ou assembléia dos produtores; o império, ou assembléia dos fortes; a igreja, ou assembléia dos sábios.
Como todo poder se afirma ora pelo que faz, ora pelo que deixa de fazer, cada um deles comporta uma modalidade ativa e uma modalidade passiva, ou vertical e horizontal, com seus respectivos representantes.
A dieta compõe-se de capitalistas e trabalhadores. Os primeiros são o lado ativo e vertical, porque têm por objetivo permanente o acréscimo e a concentração do poder econômico, que os segundos buscam dividir e distribuir.
O império compõe-se de milícia e justiça, ou nobreza de espada e nobreza de toga. A primeira é ativa e vertical, pois busca aumentar e concentrar o poder de destruição, que a segunda procura moderar e distribuir.
A igreja compõe-se de cultura e tradição. A primeira é ativa e vertical, porque busca criar novas crenças e submeter toda a sociedade às opiniões dos indivíduos criadores. A tradição é passiva e horizontal, porque busca estabilizar as crenças num sistema fixo nivelado pelos valores consagrados.
Essa divisão é natural e espontaneamente continua a vigorar por baixo de todas as concepções formalísticas e puramente inventadas do Estado Moderno. Ela é um fato e não uma doutrina.
A divisão tripartite do Estado não corresponde a uma diferenciação real de poderes. O legislativo é um amálgama de representantes dos vários poderes: não tem nenhum poder próprio e torna-se objeto de disputa entre os outros. Estes, por sua vez, rebaixam-se ao estatuto de partidos: há um partido dos trabalhadores, outro dos capitalistas, outro dos militares, outro dos intelectuais — nivelados como se fossem espécies do mesmo gênero.
2. Teses sobre o Poder[2]
1. Poder, no sentido mais universal, é possibilidade de ação.
2. No sentido estrito que tem em política, é a possibilidade de determinar as ações alheias.
3. No sentido universal, o homem só tem três poderes: gerar, destruir, escolher. O primeiro é poder da riqueza, o segundo o poder da violência, o terceiro o poder do espírito.
4. O poder da riqueza tem como objeto os bens materiais, usando os corpos humanos e o espírito como meios e amoldando-se a eles como condições.
5. O poder da violência tem como objeto o corpo humano, usando a matéria e o espírito como meios e amoldando-se a eles como condições.
6. O poder do espírito exerce-se sobre o próprio espírito, usando os bens materiais e o corpo humano como meios e adaptando-se a eles como condições.
7. Cada poder exerce-se numa dupla direção: ativa e passiva. A direção ativa tende à unidade, à concentração, à velocidade crescente. A direção passiva tende à multiplicidade, à dispersão, à velocidade decrescente.
8. O poder ativo da riqueza reside nos donos do capital. Tende a concentrar a riqueza nas mãos de poucos, ao monopolismo, a buscar os meios de crescer cada vez mais rapidamente.
9. O poder passivo da riqueza reside nos trabalhadores. Tende a dividir a riqueza, ao socialismo, ao crescimento zero.
10. O poder ativo da violência reside na milícia. Tende a concentrar-se, à hierarquia vertical, à disciplina rígida, a instaurar a obediência automática que produz a máxima eficiência e rapidez.
11. A milícia é o fundamento do poder estatal, que se reduz, em última instância, à legitimidade do uso da violência.
12. O poder passivo da violência reside na justiça. Tende a dispersar-se, a nivelar o poder, a tudo resolver por livre acordo, a desacelerar a ação.
13. O poder ativo das idéias reside nos criadores de bens culturais. Tende a concentrar o poder, a submeter as ações de muitos às idéias de uns poucos, a acelerar a mudança, a romper os hábitos estabelecidos.
14. O poder passivo das idéias reside nos homens de religião. Tende a dispersar o poder, a nivelar o comportamento humano pela média dos valores tradicionais, a anular as diferenças entre homens notáveis e homens comuns, a estabilizar a ação social na rotina sacralizada.
15. Essa divisão compreende todas as castas: a casta sacerdotal divide-se em intelectualidade e clero; a casta nobre divide-se em nobreza de espada e nobreza de toga; a casta dos produtores divide-se em proprietários e trabalhadores.
16. As castas são funcionais e não têm necessariamente ocupantes fixos: os componentes da nobreza, destronados, podem compor uma casta capitalista ou uma intelectualidade. O trabalhador, em ascensão, pode ingressar na intelectualidade ou na nobreza. Massas inteiras podem ser deslocadas de uma função a outra. As funções permanecem fixas, os ocupantes ou permanecem ou mudam.
[1] CARVALHO, Olavo de. Ser e Poder: Questões Fundamentais da Filosofia Política.
www.olavodecarvalho.org